Faz algum tempo que a linguagem da performance e um diálogo mais forte com as artes visuais, a música, o teatro e/ou a dança, foi se perdendo ou até mesmo se extinguindo de um dos maiores eventos de Moda do Brasil. Assim como uma ideia de show ou espetáculo do próprio universo da Moda, como aquele lugar onírico possível, de fabulação, narratividade, em termos de signos, símbolos, etc.
O SPFW mudou muito, poderíamos analisar sua mudança de público frequentador, postura, line up, como um grande sintoma de um contexto macro político e econômico, mas também social, cultural e midiático. São poucas as marcas ou projetos hoje que mantém o experimentalismo que era tão inspirador no começo dos anos 2000 e que dava uma esperança de liberdade, autonomia e subjetividade para um sistema que muitas vezes impossibilita tudo isso, pois as camadas são mais embaixo. Dessas marcas, a Amapô é uma das únicas que mantém esse frescor e continua apostando em desfiles poéticos e não menos políticos, cheios de performatividade e layers. Isso pareceu ser possível a partir de um planejamento e desenvolvimento de negócio, que criou diversos braços internos para manter a coisa sustentável comercialmente e ainda sim, super criativa. Trabalhando intensamente um de seus carros chefes - o jeans, a marca pode ao longo do ano se dedicar também a trabalhos colaborativos de caráter artístico, figurinos e aos seus esperados desfiles – uma das plataformas mais exploradas pela dupla Carolina Gold e Pitty Taliani – e que foi novamente o foco desta edição #45 do SPFW.
Essa energia mantida pela Amapô tem sido possível graças a rede que a dupla manteve ao longo desses anos todos, com um grupo íntimo de colaboradores inseridos em um processo de produção bastante afetivo. Entre seus amigos colaboradores (e sim podemos usar sem culpa a palavra amigos aqui!) estão, por exemplo, o artista Eli Sudbrack – que colaborou com estampas neste último desfile, o maquiador Lau Neves – que concebeu a maquiagem, assim como a fotógrafa Cassia Tabatini, da Fort Magazine - que desta vez produziu o casting. Em coleções passadas outros nomes ligados a dupla também desenvolveram parcerias.
Neste desfile a Amapô escolheu como locação o salão de festas e bailes “União Fraterna”, localizado no bairro da Lapa, zona oeste de São Paulo. Popularmente conhecido como o lugar dos “bailes da saudade”, a União Fraterna já se tornou um espaço “histórico” da cidade. O nome do local não poderia ser mais conveniente e conectado conceitualmente com o mood criado para esse show. A marca fez um twist discursivo! Primeiro trouxe à tona essa questão da fraternidade e da amizade como possíveis respostas para os nossos dias sombrios atuais e isso pautado na juventude como possibilidade de revolução a partir da festa e do fervo – um tom menos black bloc e pós-punk mesmo. Isso também foi trazido nas roupas, na maquiagem e na trilha sonora. Além disso, a dupla fez um comentário sútil mas muito poderoso “invadindo” este “tradicional” salão com corpos antes não eram “permitidos” alí, num passado não muito distante, em que lá só a heteronormatividade de classe média dançava.
A Amapô trouxe a rua e os novos tempos para o baile! A União Fraterna agora é feita de outros corpos e identidades. Toda essa potência foi alcançada no casting assinado por Cassia Tabatini, que se utilizou somente de “não-modelos” e trouxe uma representatividade muito maior do que o hoje mais ““inclusivo”” casting do SPFW.
A fraternidade ficou também por conta dos pequenos detalhes, de alguns laços, tramas e novamente redes, muitas vezes de backstage, mas que são presentes. Por exemplo, a Amapô já foi uma das patrocinadoras da Fort Magazine, que só para quem faz, sabe as dores e as delícias de se produzir uma publicação independente no Brasil, apostando em fotógrafos jovens, novos nomes, conteúdo autoral, e por aí vai, correndo riscos mesmo! Dentro desse campo minado cheio de vida da Fort, passaram pela publicação muitos dos rostos que figuraram no desfile, assim como o coletivo multimídia Mooc, formado por jovens artistas negros que estão ressignificando as estruturas do mercado criativo brasileiro. O Mooc tem sido um importante parceiro da Fort e dessa vez contamos novamente com eles para o take over de backstage e registro fotográfico geral. As imagens ficaram por conta de Alberto Tomaz. E por aí vai, personagens que vão se entrelaçando nesses fios de resistência, tentando fazer da Moda um lugar político e menos chato, com menos (porém com o ainda persistente) “carão” e mais afeto. Segue o baile...